Escrevi o texto abaixo para uma atividade de debate sobre temas transversais relacionados a formação cultural e social dos alunos da disciplina Universidade e Ciência, da Unisul. Procuro apontar os exageros e considerações que considero erradas nas diretrizes curriculares para o combate ao racismo. Segue o texto (obs.: ler também o adendo, ao final).
Ao ler o documento “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” (até o título cansa…) é, para mim, impossível não fazer um paralelo com a obra magistral de Cervantes pois o MEC, tal qual D. Quixote, parece enxergar em moinhos de ventos (escolas) grandes monstros racistas, verdadeiras feras quase mitológicas a direcionar o sistema educacional brasileiro e, quiçá, toda a população brasileira, contra os negros.
Não compactuo dessa visão catastrofista da sociedade e da educação no Brasil e a leitura das citadas diretrizes não contribuiu em nada, nem ao menos levantou dúvidas pertinentes ao que acredito ser correto.
No fundo essas diretrizes me parecem uma grande e forçada transformação das escolas em moinhos racistas para justificar o ataque do “cavaleiro” MEC montado em seu Rocinante ideológico contra um grande inimigo que, se não inventado, foi no mínimo extremamente exagerado.
Acredito que há exageros, erros de diagnóstico e erros de terapêutica nas diretrizes.
Algumas demonstrações do que entendo ser exagero:
- “O Brasil, ao longo de sua história, estabeleceu um modelo de desenvolvimento excludente, impedindo que milhões de brasileiros tivesem aceso à escola ou nela permanecessem” (Diretrizes, pág. 5). Escrever desse modo leva a crer, indiretamente, que alguém ou algum grupo agiu deliberadamente para isso, o que não acredito;
- “O Brasil […] teve […] uma postura ativa e permissiva diante da discriminação e do racismo que atinge a população afro-descendente brasileira até hoje” (Diretrizes, pág. 7). Novamente um exagero: o Brasil teve uma postura ativa diante do racismo? Não creio;
- “[…] lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações […]” (Diretrizes, pág. 11). Não entendo que existam tensas relações raciais em nossas escolas. Alunos racistas certamente existem mas a partir disso inferir que as relações raciais nas escolas são tensas é um saldo indutivo muito grande e, talvez, errado;
- “Outro equívoco a enfrentar é a afirmação de que os negros se discriminam entre si e que são racistas também” (Diretrizes, pág. 16). É obviamente um exagero dizer que os negros não podem ser racistas também (contra brancos ou negros ou outros);
- “[…] quadro da ideologia do branqueamento que divulga a idéia e o sentimento de que as pessoas brancas seriam mais humanas, teriam inteligência superior e, por isso, teriam o direito de comandar e dizer o que é bom para todos” (Diretrizes, pág. 16). Onde estão essas políticas de branqueamento? Quem disse que os brancos têm o direito de comandar por terem inteligência superior? Essas próprias Diretrizes não estão praticando o que estão condenando, já que apenas 250 pessoas que se julgam sabedoras das causas e soluções dos problemas raciais estão comandando o que as escolas e a população brasileira deve fazer? (sim, as Diretrizes foram baseadas na opinião de apenas 250 pessoas – pág. 10); e
- “[…] políticas que visavam ao branqueamento da população pela eliminação simbólica e material da presença dos negros […]” (Diretrizes, pág. 16). Novamente, onde estão essas políticas? Eu nunca soube. Eliminação MATERIAL da presença dos negros? Isso é sensacionalismo e exagero, algo impróprio para um documento governamental que se propõe a combater o racismo.
Algumas demonstrações do que entendo ser diagnóstico errado:
- “[…] Pessoas negras têm menor número de anos de estudos do que pessoas brancas […]; na faixa etária de 14 a 15 anos o índice de pessoas negras não alfabetizadas é 12% maior do que o de pessoas brancas […]; cerca de 15% das crianças brancas entre 10 e 14 anos encontram-se no mercado de trabalho, enquanto 40,5% das crianças negras, na mesma faixa etária, vivem essa situação” (Diretrizes, pág. 7-8). Os números podem estar absolutamente corretos mas isso não quer dizer que o racismo é a CAUSA dessa situação, como o documento leva a entender;
- “[…] descontruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares […]” (Diretrizes, pág. 12). Isso é questão de opinião e acredito que as Diretrizes estão erradas: o Brasil é sim um país onde existe democracia racial, e nunca vi ninguém dizer que isso é devido a falta de competência ou interesse, desconsiderando desigualdades;
- “[…] os estabelecimentos de ensino, freqüentados em sua maioria por população negra […]” (Diretrizes, pág. 12). Aqui há um grande paradoxo: desde o começo do documento se fala que há um grande impedimento ao acesso e permanência dos negros nas escolas; então como pode a maioria dos estudantes ser negra? Mais ainda: se isso é correto, se a maioria dos estudantes é negra, como pode haver tanto racismo e relações tão tensas asim?
- “[…] É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade imposta a outros […]” (Diretrizes, pág. 14). Além de não concordar com essa generalização, acho que está simplesmente errada.
Algumas demonstrações do que entendo ser uma terapêutica errada:
- “[…] Estado como propulsor das transformações sociais […] A Seppir […] recolocou a questão racial na agenda nacional […]” (Diretrizes, pág. 8). Não concondo que deva ser o Estado o grande propulsor e direcionador de transformações sociais: ele pode estar sendo dirigido por pessoas de boa índole quanto por pessoas de má índole; o Estado, em minha opinião, não é a solução, é parte de problema;
- “[…] divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial […] para interagirem na construção de uma nação democrática […]” (Diretrizes, pág. 8). No papel é muito bonito mas na prática existem experiências cujo resultado foi catastrófico (Japão, Alemanha);
- “[…] Sem a intervenção do Estado, os postos à margem, entre eles os afro-brasileiros, dificilmente, e as estatísticas o mostram sem deixar dúvidas, romperão o sistema meritocrático que agrava desigualdades e gera injustiça, ao reger-se por critérios de exclusão, fundados em preconceitos e manutenção de privilégios para os sempre privilegiados” (Diretrizes, pág. 11). Difícil encontrar algo correto aqui: a) que estatísticas mostram isso?; b) não é questão de acabar com o sistema meritocrático, é questão de capacitar a todos para se saírem bem nesse sistema; c) meritocracia não se baseia em critérios de exclusão fundados em preconceitos e para manutenção de privilégios; e d) a sentença sobre privilégios é mero clichê;
- “[…] valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira […]” (Diretrizes, pág. 11). Isso, em minha opinião, fomenta ao invés de amainar as tais “tensões raciais”. Minha opinião aqui é bem mais simples: ao invés de valorizar as diferenças, valorize as semelhanças, somos todos brasileiros;
- “[…] professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagócos” (Diretrizes, pág. 15). Novamente não enxergo tal mentalidade racista e discriminadora. E falar que os professores devem reestruturar relações étnico-raciais e sociais é, para mim, a receita de um desastre futuro: não se pode prever todos os efeitos futuros de incentivos presentes, uma ação, mesmo que baseada em uma idéia nobre, pode se revelar desastrada; e
- “[…] História da África, tratada em perspectiva positiva […]” (Diretrizes, pág. 21). Como assim, em perspectiva positiva? A história deve ser tratada como ela ocorreu e não de modo disfarçado. Ora, se a perspectiva é positiva, eu devo omitir que os próprios africanos escravizavam outros africanos? Devo omitir que Zumbi tinha escravos?
Por fim: não quero aqui dizer que não existam pessoas racistas no Brasil. Eu, certamente, conheço algumas que, em pequeno grau, poderiam ter atitudes consideradas como racistas.
O que eu não concordo é que um documento possa taxar toda a sociedade brasileira como racista (erro de diagnóstico), afirmando que existem tensas relações raciais no cotidiano (exagero) e propondo medidas que, em minha opinião, acirram ao invés de diminuir o problema (erro de terapêutica).
Existe uma desigualdade racial? Não tenho certeza. Ali Kamel, em seu livro “Não somos racistas“, trouxe inúmeros estudos para mostrar que o problema não é a desigualdade racial mas, sim, a econômica.
Essa é a posição que eu, atualmente, tendo a imputar como a mais correta: o problema não é racial, é econômico. Posso estar errado, óbvio, mas as Diretrizes não trouxeram nenhuma evidência a respeito do tema, só clichês.
E como acabar com o racismo? Aqui eu concordo com o ator americano Morgan Freeman: pare de falar sobre racismo! Vale a pena ver esses curtos vídeos:
Existem pessoas racistas no Brasil? Por óbvio que sim. Mas daí a afirmar que o Brasil é um país racista, é bem diferente.
E não deixa de ser irônico que as “Diretrizes” contra o racismo sejam um dos documentos mais discriminatórios que eu já li em muito tempo…
Finalizando: as “Diretrizes” não servem para nada então? Não, existem sim boas e interessantes sugestões em seu conteúdo. A questão é separar o adequado do inadequado.
ADENDO: Recebi algumas dúvidas em mensagens privadas (por isso não vou divulgar o nome das pessoas aqui) questionando algumas coisas do texto e do meu próprio pensamento. Resolvi então incluir alguns esclarecimentos adicionais.
- Crianças fora da escola: Os dados variam um pouco dependendo da fonte mas temos entre 96,4% a 97,7% das crianças entre 4 e 17 anos na escola (https://www.todospelaeducacao.org.br/pag/cenarios-da-educacao; https://novaescola.org.br/conteudo/2907/mais-de-730-mil-criancas-e-jovens-estao-fora-da-escola). Não é 100% mas me parece um avanço a ser comemorado. Pelas referências pode-se deduzir que talvez a maior causa de crianças fora da escola não seja o acesso mas, sim, o abandono escolar (https://www.institutounibanco.org.br/aprendizagem-em-foco/5/). E, especificamente em relação ao abandono escolar, existe sim uma diferença: 16% dos jovens negros contra 10% dos jovens brancos. Entretanto também há evidências de que as maiores causas do abandono escolar são a gravidez precoce, entre as mulheres, e a entrada no mercado de trabalho entre os homens. Quando percebemos que essas dificuldades afetas mais crianças negras de baixa renda (https://novaescola.org.br/conteudo/2907/mais-de-730-mil-criancas-e-jovens-estao-fora-da-escola) vemos novamente a questão econômica como fator importante, além de outros. Por isso apesar de reconhecer que existe uma desigualdade, não acredito que seja o racismo a principal causa desse fato.
- Exclusão social de negros: Não estou menosprezando as dificuldades causadas pela escravidão nem as dificuldades que ocorreram no pós-abolição mas, novamente, não acredito que ocorra hoje em dia uma exclusão social de negros. O que eu vejo, no dia a dia é o seguinte: negros e brancos andam de ônibus, enfrentam as mesmas filas na Caixa Econômica, vão aos estádios de futebol e torcem juntos, vão à igreja juntos, estão com os mesmos problemas no Serasa/SPC, confraternizam em churrascos, festas populares, carnaval… eu não enxergo no dia a dia as tais “altas tensões raciais”, pelo contrário: todos convivem bem dentro de suas possibilidades e dificuldades. Veja: aqui no ES a Orquestra Sinfônica costumava realizar periodicamente concertos a preços simbólicos, R$ 2,00 (dois reais), o que é acessível para praticamente todo mundo. Agora imagine se os ingressos custassem R$ 200,00 (duzentos reais). Será que uma igualdade se manteria? Pode ser que sim, mas eu tendo a acreditar que não. E isso seria causado por diferenças econômicas, não raciais, e não porque os brancos são “superiores”, “mais inteligentes” ou “mais cultos”, como as Diretrizes escrevem, forçosamente, em vários trechos. Apreciar Mozart não depende da cor.
- Meritocracia racial: Eu não falei em meritocracia racial e, sim, em democracia racial. Eu penso que a meritocracia não pode ser adjetivada, nem com “racial” nem com qualquer outra coisa como, por exemplo, “social”. O que eu penso é que não devemos combater a meritocracia, devemos apoiá-la e dar condições para que todos tenham condições de competir em condições semelhantes. E, para isso, acredito que o melhor caminho, realmente, seja através da educação. Infelizmente esse caminho é lento. Temos somente cerca de 130 anos da Lei Áurea, tempo muito pequeno para que grandes transformações sociais ocorram. E exatamente nesse ponto há uma certa diferença de caminhos: há os que acham que isso é muito lento e cabe ao governo criar uma “revolução” com ações afirmativas e incentivos diversos no sentido de “apressar as coisas”, e há os que acham que o caminho das “revoluções” não é o mais correto, sendo melhor confiar aos indivíduos as pequenas ações e tarefas diárias que, lenta mas continuamente, podem transformar a sociedade, basicamente pelo exemplo e não por imposição governamental. Eu sou mais favorável a essa segunda abordagem (não excluindo a possibilidade do caminho virtuoso estar entre as duas).
- Valorização da cultura negra: Mesmo correndo o risco de não ser interpretado corretamente (as vezes é difícil encontrar as palavras adequadas para expressar o que estamos pensando) vou tentar explicar meu ponto de vista. Eu não acredito que devemos valorizar uma cultura “negra”, da mesma maneira que não acredito que devemos valorizar uma cultura “branca” ou uma cultura “amarela” ou outra qualquer. Eu gosto de Machado de Assis não por ele ter sido negro, mas por ter sido um excelente escritor. Eu detesto Paulo Coelho não por ele ser branco, mas por considerar seus livros muito ruins. Eu gosto de sushi não por ser algo da cultura japonesa, mas por ser algo que agrada meu paladar. Eu odeio funk não por ser algo da cultura, sei lá, da periferia, mas por ser algo chulo, vulgar e grosseiro em meu julgamento. Eu gosto das músicas do Olodum não porque são feitas por negros, mas porque o ritmo e a balada me agradam. Eu gosto de Beethoven não por ser parte da cultura “eurocêntrica”, mas por considerar genial suas composições. Eu gosto de Michel Jackson não por ele ser ter sido negro, mas por ter sido um grande músico e dançarino que, de certo modo, revolucionou a música pop. Eu gosto dos Beatles não porque eram ingleses, mas por causa da boa música. E assim por diante.
- Finalizando: É incrível como estou me sentindo incomodado por ser obrigado a escrever “negro” e “branco” várias e várias vezes nessas nossas discussões. Eu não penso assim, não escrevo assim e acredito que a maioria da população também não pense assim. Pensamos uns aos outros como humanos, como poessoas, e não como “negros” e “brancos”. Esse é outro ponto que me espanta: quanto mais falamos no assunto, mais somos obrigados a criar distinções e dividir os “negros” dos “brancos”. Eu penso que isso aumenta o problema e não contribui para a solução, pelo contrário: acho que isso agrava o problema.